07 de março de 2021

     Hoje é um dia cheio de burocracias, diferente dos meus costumeiros domingos. Desde muito jovem, sofri profundamente nos domingos, eu e uma amiga - descobri recentemente esta coincidência; neste sentido, não me sinto muito única, acho que o domingo tem uma coisa dele de abrir uma caixa de memórias e esparramá-la pelo chão da casa, mas é preciso ter tempo, por isso que, hoje, neste 07 de março, vivi pouco o domingo. Porém, não deixo de admitir certas coisas, uma vez eu escrevi que escrever é se confessar, tenho certeza que não fui a primeira a escrever isso, mas essa frase me veio pronta na cabeça e me atormentou por dias, esquisitices. Meu cérebro tem essa coisa de me atormentar por dias com alguma frase específica - lida, ouvida ou escrita. Por exemplo, nunca superei os versos de Wisława Szymborska, que dizem mais ou menos assim: qualquer começo é só prosseguimento e o livro dos eventos está sempre aberto ao meio. Pois é, tenho esta memória que me martiriza. Memória é uma coisa esquisita, os rostos vão virando uma névoa que, vez ou outra, parece que você inala profundamente e consegue sentir presença, essa coisa que Heidegger tentou entender e parece-me que desistiu, deixou para os poetas. Não tenho muita ambição com isso aqui, mas quero compartilhar com algumas pessoas para que, talvez, elas não esqueçam de mim nem eu me esqueça de mim. Sabe, leitor, às vezes, percebo que neste tempo de pandemia - esta distopia verídica - olhamos nos olhos as saudades, há saudades de onze anos, de seis anos, de uma vida inteira, saudade de mortos, saudade de nascidos, mas perdidos, não foram só as saudades de dois anos, todas voltaram como quem empurra uma porta muito bem trancada, quem está dentro se assusta e demora um pouco a identificar os rostos, quase aquela sensação de festa surpresa que crianças populares sentem quando ganham uma. Nunca recebi uma festa surpresa genuína quando criança, minha primeira festa surpresa genuína veio aos 19 anos, sou bem atrasada nos ritos culturais e adiantada nos filosóficos, infelizmente. Perder a materialidade das pessoas talvez seja, para mim, o maior dos prejuízos da humanidade, ir perdendo a materialidade sob a palma da sua mão, não saber mais ao certo como é a pele das pessoas, como vibram, como chegam, se têm temperatura quente demais ou morna - eu tenho quente - se as pessoas ainda conservam o cheiro de sempre - não falo de perfumes - por exemplo, sei que meu pai cheira à madeira, um pouco de cigarro, gengibre e trident de menta, é forte e ainda assim fresco. Como é a materialidade das pessoas que você perdeu na vida? Você se lembra dela? Eu tenho uma vizinha morta, a quem carinhosamente chamei de vó a vida inteira, ela deixava-me maquiá-la, deixava-me montar nas suas costas e me levava ao carnaval de rua, quando cresci, não foi fácil nossa convivência, alguma coisa se perdeu (vivo com medo de perder esta coisa), mas, lembro-me como se sentisse agora que ela tinha um cheiro forte, completamente diferente dos cheiros da minha casa, um cheiro abafado que se misturava com a alfazema que usava e era macia com seus cabelos brancos e pele de cedro da índia, é uma coisa esquisita os sentidos humanos; pegando o ensejo, já indico aqui o filme Perfect Sense, é uma bela profecia, uma maldição, um karma, vá avisado, leitor. Tem gente que te eletriza completamente, tem gente que não te promete nada até você tocá-la, é a pele que se confessa, muito parecida é a vida: é só ao toque na sua fina malha que ela se abre. Eu não sei, eu não sei... Nunca acreditei muito no gênero, acredito em gente, queria dizer isso, acredito, também, e sobretudo, em gente que acredita em mim, que se deixa amar e que me ama de volta. Por que disse isso? Porque moro no Brasil, ninguém deixa você verdadeiramente ser por aqui, motivo pelo qual tenho poucos amigos e tudo bem, bom que cabem todos em uma tela de pintura. O livro dos eventos está sempre aberto ao meio, creio nas estrelas, sempre cri. Quando pequena, proibida de estar à noite na rua, arrumava qualquer desculpa pra ver o céu, gostava de contar histórias no portão de casa, na minha rua mal iluminada, amarelada, com amigos queridos, qualquer desculpa servia pra estar sob a vigilância do ninguém que é o mundo, meu quarto mesmo tinha uma fresta por onde eu via o céu e, às vezes, estrelas, pedi que nunca mexessem ali nas reformas da casa, era meu fio condutor. Gosto do dispêndio da natureza, gosto como ela é insana, sensual e malvada, gosto como ela desdiz o tempo inteiro o homem, como o põe à prova, a natureza nos ensina que, às vezes, é preciso um escândalo, um amor de horas a fio, um grande choro, a natureza nega e afirma o homem, dispendiosa, já disse. As areias do Saara fertilizam os solos da Amazônia, não sei se vocês sabem disso. Tenho saudade da materialidade das pessoas, leitor, e queria que você pensasse nisso, há pessoas que quando entram no seu campo de visão abaixam as luzes, a vida começa, assim, a se mostrar. Tenho medo que o físico se perca de vez, a voz se perca de vez, odeio a ferramenta de apagar mensagens, odeio e sinto pena de nós na nossa inútil ilusão de responder depois uma conversa iniciada agora, o tempo é implacável, o prazer das palavras também: uma comunicação é uma urgência, aquelas, que você sabe quais e de quem em específico. Escrevo isto com dor na consciência, sei das minhas hipocrisias, eu odeio telefones, afinal... mas, recentemente, passei quatro horas com uma querida amiga no telefone e como nos confessamos! Outra vez comparti um silêncio demorado sentada na sala de casa à meia luz na linha telefônica, fitando um móvel muito feio, não lembro quem segurava o outro lado do fio condutor desta entrega específica; se foi você aí que me lê, me lembre. Mas o telefone também não basta, não há entrelace de calor, não há troca de ondas cerebrais, aquela coisa de você pensar muito numa música e outra pessoa começar a cantá-la. Por isso, a natureza segue ganhando em tudo, somos uns iludidos. Já não temos mais imediatismo em conversas que poderiam nos revelar a nós mesmo, será esse o medo? Nenhuma emulação chega aos pés da simples, bela e harmoniosa tecnologia de sentar-se numa cama e partilhar qualquer palavra. 

A quem não vejo há mais de um ano e sabe de minhas saudades: um grande beijo.

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