14 de março de 2021
Beleza e verdade. Duas palavras que me pegam de jeito. E que, para mim, tem muitíssimo a ver com amor, mesmo que amor nuble às vezes a verdade, ainda assim acontece porque vem no rastro de uma descoberta, que é tudo que a verdade pede. Para se amar, é preciso estar embebido em beleza, é preciso ver o tempo parar e as coisas pairarem ao redor do objeto de desejo. Desejo, outra palavra que me pega e que tem muito a ver com a cor vermelha, que é sanguínea, mortal e alquímica. O que tem faltado nesses dias são essas três coisas: beleza, verdade e desejo; mesmo que você divida um leito compartido, mesmo que você ame, a beleza e a verdade tendem a estar para fora das janelas, é fácil se iludir com a mentira dentro de qualquer cubículo, é necessário olhar aquém de si, é importante ser ensimesmado, mas não ao ponto de não saber nutrir o desejo pelo fora de si. A beleza se manifesta no íntimo, só daí ela advém, mas ela ganha potência no mundo. Sei, leitor, que você deve ter passado uma ou duas vezes na sua vida pela experiência de observar alguém caminhar em sua direção numa rua movimentada; você esperava vibrando por aquele objeto que caminhava até você e aí está o momento da beleza, o êxtase, de deixar-se irradiar a ponto de não assimilar mais nada: quando o mundo se suspende e o objeto ganha áurea, parece caminhar em nuvens e é sua aquela coisa que vem, pelo menos, pelo minuto no instante que compartilharão. Beleza e verdade tem muito com expectativas também: todo mundo dá querendo receber, ajustar esses ponteiros é a verdadeira arte. Tenho meditado nessas duas palavras que se manifestam na arte de uma maneira espetacular, a palavra delícia (que tem a ver com beleza e verdade) está no quadro de Bosch por um motivo: é um gozo de humanidade, absolutamente desorganizado e, por isso, humano. A beleza tem pouco a ver com organização, embora os anos 2000 tenham querido alisar os espinhos eriçados do que é o belo. Anos minando paredes, desenhando arabescos, retratando o etéreo, como fez William Blake, para que a contemporaneidade tente alisar e simplificar tudo, conselho: as coisas boas não são simples, já dizia mais ou menos Espinoza. As coisas boas podem parecer simples, e é aí a grandiosidade da brincadeira, parecer simples. Porém, há um grande trabalho de espírito para entregar-se verdadeiramente a beleza simples de uma dia ensolarado, para entregar-se à beleza de um girassol selvagem que nasce atravessado quase numa parede, para entregar-se às cores que uma mosca traduz se olhada no microscópio, tudo isto é custoso; quem diz que é fácil deve ter superado os anos de filosofia que estudam a beleza e, por isto, está mentido. Uma mulher se enfeita no nada, falo por mim, enfeito-me com o próprio olhar; nos dias de cansaço, olho-me demoradamente no espelho catalogando as falhas do rosto, catalogar para embelezar: o maior embelezamento é o olhar e a palavra dita sobre o ser amado, só assim se acariciam verdadeiramente as pessoas, já falei da materialidade de ver - sentir no tato - dizer diretamente. Sempre me comovi profundamente, leitor, nunca consegui assistir a um programa policial inteiro, certas narrativas desolam a minha alma, tenho pavor de qualquer flagelo, o que me convém é a beleza, esse néctar puríssimo e raríssimo, por isso procuro-a como quem escava o Egito Antigo, a Agonia de Eros é uma boa recomendação no dia de hoje. É preciso viver em agudo, em agonia radiante às vezes, é preciso sentir a beleza do outro te atravessando os poros, olhe bem para uma serpente e se deixe ver, veja também o movimento de uma pantera, o movimento mortífero. Beleza é isto, é "padecer por causa de ti". Espero que se saiba que a beleza que falo não é esta posta em redes sociais de mil mulheres e homens iguais, eu falo de espírito, verdade e de humanidade, dessas coisas que - verdadeiramente - escancaram a beleza. Beleza... esta coisa quase extinta e tão prolífera, o infernal paradoxo... há beleza no ruir, um corpo nu é belo porque é contravenção, porque está na não-norma, amor é não-norma no mundo da guerra. O mundo da guerra, leitor, este nosso, infelizmente. Esta semana nos entregou mais de cinco mil mortos e meu vizinho tem ouvido Cazuza religiosamente todos os dias à noite, não deixo de notar o fio condutor, é preciso muita música para calar o luto. Esses cinco mil mortos me batem no estômago e, quando lembro deles, não deixo de lamentar que talvez a beleza não tenha sido uma experiência palpável para muitos, nós temos um problema estético na sociedade. A vida vale mais com a beleza, quem não vê beleza, entende menos de vida, talvez seja este o problema de governantes tão atarracados. Desculpe, você que me lê, o pensamento mais prolixo que o normal, as coisas vão caminhando cambaleantes por aqui. Minha nova vizinha escuta agora Led Zeppelin e quanta beleza há naqueles homens, todos forjados na contravenção de qualquer cultura, a beleza existe, primeiro, como contravenção, assim foram os movimentos artísticos. Samples, rifles de guitarra, baixos de blues, tudo matéria do mais puro tesão que tem se calado, a sociedade caminha a passos lentos para a cova e eu tento segurar quem eu amo comigo. Escute Ella Fitzgerald cantando One note samba e se segure também.
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