21 de março de 2021
Dia triste. Lockdown. Coisas bailando no ar. Amanhã eu tenho uma consulta com uma cartomante. Espero não ser mais uma Macabéa. Veremos. Vamos ao o que interessa: tenho dançado bastante esses últimos dias, reaprendido, na verdade. Quantas vezes temos que reaprender qualquer coisa? Percebo um moto-contínuo, quanto mais o desespero, a desavença, o abandono, o sentimento de perda se dá, mais reaprendemos. Essa majestosa natureza humana, meio tateante em tudo, sem ensaio algum, tudo é sempre a estreia. Creio que, daqui há alguns meses, sendo positiva - essa característica que não levo a sério, teremos que reaprender a andar e a olhar as coisas que sempre olhamos a vida inteira. Eu, que trabalhei nos últimos anos andando para cima e para baixo na cidade, todos os dias, às 15h45min, passava pelo mesmo trecho de mar, descia paradas antes pra poder sentir aquela coisa clichê que o mar arrebenta em nós, toda grandeza desata alguma coisa, todo dia estava lá: era uma mulher negra com o mar, às 15h45min, fazia parte, as dores físicas e de outra natureza tendiam a amansar e eu tinha uma semana inteira com cabelos de maresia, por dias, náufrago, a abandonar navios (ou a pilhá-los). Como andar novamente por ali e evitar os atropelamentos? Tenho uma cabeça nas nuvens, quem me ama, certamente, já me salvou de um atropelamento, de uns tempos para cá, tive que me salvar sozinha, aprendi reaprendendo. Hoje, começo da tarde, eu, que moro perto do mar, tive a casa reivindicada, sitiada, o cheiro de mar invadiu as janelas, implacável: a vida, a minha, cobrando espaço. Por essas e outras que danço. Sempre dancei muito, desde nova, dancei qualquer coisa. Aprendi a sambar pela cobiça de não fazer feio numa roda de samba quando fosse mais velha, esse momento ainda não chegou, nem a roda de samba nem o fazer feio. O primeiro virá. Das coisas que nos preparamos parcialmente inconscientemente para que venham, as coisas que admito pra mim como implacáveis, talvez por isso deixo ir muita coisa, sei que voltarão cedo ou tarde: venha(m) de onde, como e quando vier(em), eu ponho a mesa. Toda a vida é um espaço e você, dono ou dona do espaço, faz com ele o que quiser, pode transformá-lo numa empresa, pode abandoná-lo, pode, como eu, acender velas, incensos, ligar músicas, empoeirá-lo de livros, pode queimá-lo depois, enchê-lo de água, dividi-lo, alugá-lo, reparti-lo, criar quartos para cada visitante, pode sempre pôr a mesa e pode dançar para ocupar todos os cantos, pode pendurar fotografias ou deixá-lo trancado para sempre, você pode também escavá-lo e destrui-lo. Dançar pra mim sempre foi coisa seríssima. Um dia, vi um espetáculo onde uma mulher dançava num bambu, ela, o bambu e o espaço aberto, uma das coisas mais viscerais e belas que eu já vi na vida, o nome da dançarina era Poema, grandessíssima coincidência. Dançar é o movimento do corpo voltando pra natureza, um dos rituais mais sofisticados é dançar num quarto quando ninguém vê, pode ser a dois, o quarto, aquele espaço de pura entrega. Você pode, leitor, simplesmente, fechar o olho sobre o ombro de alguém, a música é secundária, se mexa pra lá e para cá e veja, você mesmo, como dois vão ser um; se houver música, você verá que o corpo tende a sofrer pequenas premonições dos próximos movimentos, o corpo é todo um oráculo de passos futuros, a música devolve isto para ele, a dança cria o ambiente, ela alarga. Cuidado pra não se confessar pra quem não atente para a confissão; o corpo, em dança, confessa profundamente. Antigamente, eu tinha pouquíssima vergonha, dançar me satisfazia, por isso digo que reaprendo, eu que tenho me ensinado, o corpo é um mistério e já não é o mesmo de antigamente, embora a coisa ancestral do samba ainda esteja aqui. Dançar também pode ser triste, isso você sabe. Os oráculos, bacantes e bruxas dançavam, quem é muito cartesiano não dança, gente que não sabe se entregar, principalmente porque a dança precisa de estética mínima, também não é qualquer uma, dança também é ilusão. Há muita força para parecer uma pena, peso e leveza, na dança, tomam sua unidade. Coisas que começam com dança acabam com dança, talvez por isso nunca acabem, por isso repito: cuidado com quem vá dançar, nem todo mundo atenta para a confissão do corpo. Ontem mesmo eu olhava o muro de concreto da minha janela na cozinha e logo ali embaixo sombras dançavam, os vizinhos em catarse gritavam David Bowie, as cabeças chacoalhavam, os cabelos alçavam voo, os corpos de um lado para o outro, a lua estava soberana em cima de um prédio mais à frente, como se estivesse apoiada na cobertura, tive a impressão de que, naquele momento, ela olhava comigo aquele átimo que se desprendia da norma: dois corpos vibrando uma estrutura inteira de concreto, dois corpos projetando sombras inéditas que jamais se repetirão. Naquele momento, deuses e bacantes desciam ao número 201, eu acredito. Daqui a um tempo, espero dançar na rua, sem motivo aparente, coisa que eu era dada a fazer, mais uma das coisa das quais eu digo a mim mesma: veremos. Essa semana meu irmão caçula me ligou em vídeo, perguntava-me: "Como se faz um livro?", você sabe? Pergunta profunda que respondi com a descrição do labor que ele mesmo completou: "escrevo nas folhas e junto, desenho uma capa". É por essas e outras respostas que crianças dançam muito cedo, a obviedade da necessidade da arte ainda não se desprendeu delas. Não à toa, no Brasil, se samba, quem não samba no Brasil não merece o Brasil, por isso, você que me lê, hoje, aperte o play em Sarah Vaughan, cantando The Smiling Hour, abra alas e espaço, pode dançar secretamente no chuveiro, alguma coisa há de chegar, tem que haver uma porta de saída, quando chegar: ponha a mesa.
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