29 de março de 2021

Hoje não é domingo, primeiro trato neste espaço que quebro. Penso, às vezes, que certos tratos e condições só existem para serem quebrados, falo por mim, é claro, que sou uma pessoa cheia das pequenas rebeldias. A minha primeira rebeldia foi a noite. Sempre me deu um profundo prazer estar na noite, desde muito jovem (eu, que não sou velha) senti pela noite certa atração libidinal e que não sabia de onde vinha - não havia nada na minha noite por muito tempo, mas era nela que eu existia com plena consciência de mim, o eu, o respirar de meus parentes nos outros quartos, patas a amaciar o chão, quando muito uma alma amiga que dormia em minha outra cama e o nada. Na noite, buscava os livros empoeirados, fazia pequenas excursões pelas gavetas, escrevia em cadernos que foram soterrados hoje por gramas e gramas de papel, inconscientemente proposital, pois sei que voltarei aos cadernos e, se soterrados, a noite é mais interessante, é bom retirar a poeira da memória. Sei que o sol revela, leitor, mas a lua delata. A noite me deixa brilhar com maior consciência de corpo, é meu período preferido de pintar as unhas de vermelho ou de pintar um quadro, expressão vinda sempre de um sonho. É um hábito pouco saudável num mundo como o nosso, em que a manhã tece bem os fios da exploração - carrego a culpa de, quando posso, dormir manhã a dentro - eis aqui um paradoxo: gosto da noite e amo os sonhos, portanto, o sacrifício da manhã não me é nada caro, corto sua garganta sem pensar duas vezes e tenho os dois pra mim: os sonhos e a noite lúcida e lúdica de mim. Pensava, antes de ler qualquer teórico, que sonhar era ter uma estrela sobre a cabeça, assim: o sonho se abatia sobre o sonhador, quando, na dança estelar, uma estrela estava alinhada com o córtex cerebral e ela, que está anos luz atrasada ou à frente de nós, tecia fina conexão de futuro ou de passado, vem lembrando-nos um rosto ou uma sensação já vivida, eis minha explicação perfeita para o dejavú. E isso me lembra aquele poema belíssimo de Adília Lopes, da década de 60, sobre estrelas e rapazes, cá lhe digo leitor: "Não sei se me interessei pelo rapaz / por ele se interessar por estrelas / se me interessei por estrelas por me interessar / pelo rapaz hoje quando penso no rapaz / penso em estrelas e quando penso em estrelas / penso no rapaz como me parece / que me vou ocupar com as estrelas / até ao fim dos meus dias parece-me que / não vou deixar de me interessar pelo rapaz / até ao fim dos meus dias / nunca saberei se me interesso por estrelas / se me interesso por um rapaz que se interessa / por estrelas já não me lembro / se vi primeiro as estrelas / se vi primeiro o rapaz / se quando vi o rapaz vi as estrelas". O sonho que atrai a estrela ou a estrela que atrai o sonho? Ou só pode ver estrelas quem sonha? "Ora direis ouvir estrelas", leitor... Não ver, mas ouvir. O sonho é isto, poder ouvir o que, pela manhã desperta, não diz nada, só a vigília pode sussurrar no nosso ouvido uma premonição, atente para o seu sonho, se não for premonição, é diversão, o sonho também serve para o dispêndio, para quebrar todas as leis e para encontrar quem muito lhe faz falta. Levo muito a sério o sonho, sou uma mística incorrigível, procuro sinais em fumaça, tarôs, irremediáveis coincidências e, obviamente... estrelas. Que vale a vida se vamos pacificar e positivar tudo? Se vamos apenas existir quando pensamos? Pergunto-lhe: se pensa no sonho? Ou só se deixa ser? As escolhas correm soltas a galope e se despe exatamente aquilo que o impulso pede, das delícias do inconsciente. Gosto muito do que deixa qualquer névoa, tudo que fala de símbolo, tudo que não se diz ipsis litteris, que chatice é uma existência ipsis litteris; por isso, por onde vou, quando vale a pena, deixo o fio solto para que, qualquer dia, na noite, entre por uma janela de sonho, e reacenda esse pavio de vela antiguíssimo de memória, experimente.  Um dia, li em algum lugar que os sonhos podiam ser considerados uma realidade paralela, já que passamos muito tempo pelas bandas de lá, os argumentos contra e a favor eram muitos e pouco me interessavam, pulei de alegria por estar escrito que a experiência do sonho é uma experiência factível, mesmo que o outro encontrado no sonho seja de névoa e ele, do lado de lá, num outro sonho, não seja fisicamente afetado, mas é incontestável: quem sonha é afetado pelo sonho, ele (o sonho), às vezes, redireciona toda uma existência. Minha vó tem medo de sonhar, é um terreno do oráculo para ela, tem medo de prevê desgraça - e já previu algumas, acredite se quiser nesta bruxaria moderna. Já previ desgraças também, sobretudo das pessoas que deixei o fio por acender, e já previ bonança, minha estrela volta e meia pousa no meu córtex e me manda um recado, às vezes, não lembro. Sei de gente que se apaixonou por quem viu em sonho e, depois, andando numa rua despretensiosa, achou aquele rosto já revelado: reconheceram-se, então. Xamãs sonham para orientar, Deus veio em sonho para Enoque, Nabucodonosor também sonhou, os Jardins da Babilônia, hoje, só são encontrados em sonho, a Biblioteca de Alexandria também está por lá. Presa neste quadrado de angústia, sonho que recebo gente, que corto tomate, que desço as escadas, abraço, beijo, que sorrio com a boca, que mordo frutas da feira, e deixo o caldo escorrer entre dedos, que me encosto em lugares duvidosos, que corro e que danço com quem amo e com quem não amo, numa massa de corpos suados a céu aberto, que toca-se na curva do pescoço e se respira o mesmo ar de outrem - é pra lá que tenho ido. Por isso, sigo sem pena de sacrificar a cabeça da manhã e de fazê-la sangrar sobre minha bandeja de prata, prefiro sonhar a estabelecer a realidade absurda e ter um corpo que não pode ser espremido pelo mundo sem que eu corra o real risco de morrer sem ar. Por isto, para hoje, juraremos que não temos arma nenhuma contra quem ou o quê o sonho traz, que sonharemos a galope, a passos largos, entregar-nos-emos: que ele venha como quiser, pegue aqui este fio solto e dê o play em Caetano Veloso cantando Come as you are, e venha você também como é. Então, para ratificar esta viagem, por que os sonhos, hoje, nessa segunda insossa, leitor? Porque num país em que se morrem três mil seiscentos e cinquenta potências de vida por dia, resta-nos, irremediavelmente, sonhar, vestir nossas melhores roupas para o festim do sonho, beijarmo-nos e abraçarmo-nos por lá, e esperar que a estrela que venha do futuro nos diga que, nós, que aqui estamos, ainda não morreremos antes de beijar a face real de quem amamos.  

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