04 de abril de 2021

Tenho contado os mortos, infelizmente. Já são quatro entre familiares distantes, conhecidos, amigos e pessoas de convívio próximo. A semana se arrastou como uma serpente após jantar um animal gigantesco, dias parados e silenciosos sob a esperança das costelas romperem o corpo colossal dessa dor insana. Sou uma criatura sensível ao luto, propensa a chorar facilmente por todos os corpos contados no Brasil, o que tem me pegado de assalto: quando lavo pratos, essa terapia indesejada, sou arrebatada por uma dor que nasce primeiro numa expressão facial de negação, aquela que suprime o que foi recalcado, mas nem ela consegue, são lágrimas à deriva e a ver navios. Em A Liberdade é Azul, esse filme que já fica aqui a indicação - aproveite e emende com o vermelho e o branco e forme a bandeira da França - a personagem principal surpreende sua empregada chorando a morte do marido da protagonista e pergunta: "Por que choras, Marie?", Marie, que fixa aquela senhora de cima a baixo, responde: "Porque a senhora não chora". Talvez eu chore porque outros não choram, essa tamanha e desagradável função das emoções - nem sempre boas - que me acorrenta sempre desde que os primeiros passos foram dados por aqui, meu coração é um beija-flor: rápido, sensível e de fácil escape, no entanto, se assusta com facilidade, segurá-lo é como ter um pássaro vivo nas mãos (Clarice concordará), sei porque tantas e tantas vezes o segurei sozinha. Essa semana foi esquisita, as mortes vieram de monte e os amigos se foram para as suas demandas diárias, construir qualquer que seja a ilusão do capitalismo para assegurar um futuro que não existe, só existe o agora. Diante da morte, as coisas ficam opacas e tomam um grau de profundeza maior, parece que uma certa neblina entra pela janela aberta da angústia e os olhos entram naquele tipo de vigília que só o sono proporciona: falo pouco, escuto muito mal, apenas executo os labores diários e tenho estado cansadíssima. Hoje é Páscoa. Turbilhão de lembranças de uma família cindida muito antes da pandemia, gostos que só velhas senhoras podem proporcionar, brindes inexistentes, passeios em busca do bacalhau que já não são feitos. Eu, meu pai e a cidade do Recife, essa história antiguíssima, a perda é uma coisa inefável. E temos perdido tanto. Essa semana morri de compassivo ódio por todos os meus amigos (estejam avisados), não porque não me responderam nessa mentira que é a rede social, mas pela falta dispendiosa que são há tempo no meu peito: que maldição amar alguém.  O marido de uma mulher a quem admiro muito morreu também, um tempo de sucessivas perdas, os dois escreveram livros juntos, travaram debates que foram ao ar, conversaram por anos sobre a mais pura e sensível matéria de vida, tiveram um filho, o contato e o complemento era tanto que nunca imaginei que estivessem submetidos ao casamento, estavam, surpresa a minha e ela dizia em seu depoimento público de luto, com fotos sorridentes daquela mulher seríssima: Cotardo, meu amor. O depoimento poderia terminar aí, mais uma vez danças sentimentais misteriosas do campo do inefável que só são atingidas pelo vocativo do ser amado, como se despedir de um corpo? Um amigo que também morreu essa semana era casado, como fica o buraco de presença? O Brasil parece não saber ao certo o que fazer com a monstruosa cratera subjetiva de vida perdida no nosso território. Um dia, um amigo, de madrugada, em mensagem inusitada, há anos, disse-me: "Eu sofreria tanto se você morresse", a dor da morte é de alguma forma uma matéria egoísta, pois quer prender pra sempre qualquer coisa de alguém, assim também o amor. O que mais me pega bem na veia latino-americana é a impossibilidade de estar presente quando do último adeus, ver, pelo menos última vez, aquele amontoado de veias e sinapses nervosas já apagadas, tocar cabelos que perdurarão ainda um tempo, sentir uma pele que, mesmo que longe da vida, ainda é de alguém, como se despedir de um corpo em distância? Sem que se possa cair sobre ele em pranto ou beijar-lhe a face uma última vez? Coisas muito esquisitas de se pensar? Eu sei, leitor, venha comigo se puder. Lembro de minha vó morta, sua expressão serena que olhei atentamente de perto, espírita e meio bruxa, sabia que ela estava por ali a também admirar aquele corpo que era seu, Bataille diz que a morte é uma indecência, eu concordo. Mas, sim... Páscoa: um dos poucos dias que rezo, hoje, rezei sozinha na mesa onde ainda cabem mais de cinco pessoas, chorei, não me envergonho e não era de gratidão - espero tê-las, as mais de cindo pessoas, sentadas a tempo e em breve, ver seus rostos dourados sorrindo e repartindo o pão e o vinho comigo, fazendo esta feita do ritual pagão de consumir um santo e tê-lo dentro de si, ele que vive para sempre. O Brasil, leitor, precisa de choro e não de festas clandestinas em boates patéticas que ignoram o indizível, portanto, chore um rio, quando puder, por ele. Para facilitar: Cry me a river, na voz de Sinatra. Que passemos por essa e possamos, em breve, chorar abraçados de qualquer alegria.

Comentários

  1. É sempre uma deliciosa surpresa lê e compartilhar a minha existência com a sua. Seu texto chega aqui com tamanha delicadeza, como sempre, nos lembrando a morte e o luto com toda sua entrega e poesia. Obrigado.

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