11 de abril de 2021
Chove muito no Recife. O que significa que a cidade está cindida entre indiscutível beleza do céu noturno tingido por milésimos de segundo de branco pelos constantes relâmpagos e pelo desespero de quem já perdeu o que não tinha, aquilo mesmo que o filme Parasita mostra com tanta maestria, as sociedades mais desiguais conseguem ser mais profundas porque, infelizmente, experimentam os mais terríveis sentimentos e cenários e é só assim que uma boa alma pode se forjar: quem mergulha na profundeza da agonia e consegue - não por merecimento - voltar à superfície, é assim que nasce arte, por exemplo. Sempre foi curioso para mim essa chave de funcionamento humano, o duplo: forte e fraco, dia e noite, morte e vida, amor e ódio, feminino e masculino, todas essas coisas que são faces, quase sempre, do mesmo personagem, são duas grandes carpas girando uma pela outra num aquário oriental, existem sempre em dupla, em uníssono, bailando uma dança inconsciente e eterna, uma não pode existir sem a outra, o sutil equilíbrio da vida. Para tanto, todos esses duplos são um e estão em qualquer corpo, pelo menos para mim. Nietzsche disse que a Literatura anda mascarada entre os homens, é uma das coisas mais bonitas que já aprendi, tudo, no final das contas, dá boa ou má Literatura, vivemos nessa mimese eterna e achamos, bobos que somos, que inspiramos os livros; quando são os livros que nos inspiram, por isso, a escolha do que se vai ler é como a escolha de um parceiro de dança: é seríssima. O livro é um ser de peles, ele transpira e respira, carece só de um hospedeiro, por isso sempre me foi autoexplicativo o porquê de serem eles - os livros - os primeiros lançados à fogueira das diversas inquisições que já atravessamos, um livro pode facilmente construir uma mulher e um homem também. Um livro molda tudo, para mim, foi sempre um livro que me ensinou qualquer coisa: inveja, perdão, amor, sensualidade, não só pelo tema, mas pela forma que ele pode ser escrito, já pensou nisso leitor? Há autores, como Marçal Aquino e Clarice Lispector, que escrevem como um gato a lamber as suas patas; há autores, como Dostoiévski, que escrevem com um machado na mão, há outros que escrevem, como Kafka, para se perdoar e tudo isso eles dão de graça, não pelo tema de qualquer que seja a narrativa, mas pela forma como dispõem as palavras no papel, essa magia puríssima. Proust, o sonhador, disse que os bons livros são escritos numa língua estrangeira, não posso discordar, todos os livros, de todas as línguas do mundo, ainda que traduzidos, são élficos, eles aliciam quem se deixa aliciar e essa coisa toda é sem volta. Um dia, desmereci a Bíblia - veja só que heresia, não é de hoje que ameaçam a minha queima - disse, do topo da minha adolescência, que seria burrice total acreditar num livro do qual se desconheça o autor, reservadas as minhas críticas pessoais à cafonice que se tornou a religião, veja leitor, como estava eu erradíssima: não é qualquer autor desconhecido? Um atravessador de rios? Um lunático? Não é qualquer autor alguém que, de certo, não pode ser daqui? Por isso, eu, que sou chatíssima, e cometo vez ou outra a delícia da blasfêmia, acredito que quem muito se orgulha se escrever livros em quantidade, escreve mal, assim como quem muito se orgulho de beijar muito, beija mal. Essas coisas: beijar, amar e escrever são coisas da mesma natureza, ou seja, coisas que se aprendem com o esmero da demora, coisas que só grandes desesperos ensinam, coisas que rastejam e ruminam, coisas que, tantas vezes, quando você, leitor, achar que capturou, verá que o que passou por ti foi uma sombra. Amar e escrever são ações mascaradas, às vezes, só as avistamos à distância dos anos passados, quando você olha para trás e diz: "puxa! como amei!", mas aí você sabe, leitor: tempo passado, tempo perdido. E é por isso que, quando um verso se formar na sua cabeça, repita-o com os lábios para que você não o esqueça e não importa que tipo de papel importante você carregue: escreva. Faça, no tempo, soar sua sílaba, como diz Caetano Veloso em Muito Romântico, escute. Acredito que só a Literatura pode nos salvar agora, só uma nova aprendizagem do livro dos prazeres (a alusão ao livro de Clarice não foi à toa), só uma dessas Literaturas que não sirvam para nada a não ser que para afogar nosso espírito em agonia, como bem fazem as Memórias do Subsolo, só um grande choque de não realidade pode nos ensinar de novo a existir com a mínima decência, não porque vai nos ensinar, mas porque nos mostrará o fascínio e o perigo do oposto, a Literatura é pactuada com o mal, caso não saiba, caro leitor. A Literatura está aqui para transmutar a todos e não para ser acessório de autoajuda do capital. Livros deveriam ser jogados por janelas anônimas, como garrafas de náufragos, e não taxados sob uma desculpa tacanha de que não lemos, não lemos porque não nos ensinaram a ler, porque ler é o começo de uma formação pessoal indestrutível, de um espírito inquebrantável, é o mais próximo da ideia de deUS. Ela, a Literatura, essa senhora de preto e de mãos longuíssimas, ensina a chorar, a sofrer, a se despedir e a morrer como ninguém. Leia.
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