16 de maio de 2021
Os pratos estão acumulados na pia e tudo é desconfortável. Tenho dores acentuadas na boca e preciso trocar os óculos. Quinta-feira, fiz vinte e seis anos, ontem, parecia ser o ano dos meus dezoito e eu podia tudo, sinto que caminhei muito até aqui e sei que os pés ficaram mais chatos, mas ainda há algo que não reduz nem alarga, é duro e sempre, como os olhos de cão da minha cadela que me acompanha há quase dez anos. O tempo é irrealizável, como diz Simone de Beauvoir, que aprendi, hoje, no meu ofício de revisão, que me serve pouco como mulher, já que sou uma negra. Vesti um belo vestido branco um dia depois do dia de meus anos. No dia 13, distribuí poemas, recebi e-mails, crônicas, flores e artifícios para pintar os olhos. E choveu muito no Recife, busquei qualquer significado profundo em tanta água e o céu era uma boca vazia, ele só me dizia catástrofe e eu interroguei muito o vermelho das nuvens de aço, nada para mim naquele dia, só o tempo nas minhas mãos, escorrendo, escorrendo e escorrendo. O tempo escorre. Mês passado decidi que ia publicar um livro, mobilizei amigos, organizei o livro, desenhei a capa com significado, estipulei um preço, fiz de tudo: não publiquei o livro; isso lembra-me de que, quando menor, fascinada pelas borboletas, decidi que faria um relatório sobre borboletas - sem saber ao certo no que consistia um relatório -, minha ideia era descrever todas que eu conseguisse ver durante o dia, três dias correram de observação assídua no quintal de casa, o relatório ficou-se por alguma gaveta, talvez esteja lá até hoje perto de uma caixa onde guardei segredos muito antigos. Bem, nos vinte e seis, espero dar saída à poesia, ela que já deve me odiar por não fazer nada com ela a não ser guardá-la. Domingo, noite, silêncio, ontem, neste horário, eu ouvia gargalhadas e músicas belas no apartamento 202, aquele onde um casal dançava bastante - já te falei, leitor, nesta mesma hora, ontem, eu ouvia gargalhadas e o ressoar de conversas informais, Cazuza, Scorpions (que voltei a escutar por influência direta dos vizinhos), tocava também aquela que diz que se alguém pergunta por mim, diz que fui por aí, com o violão embaixo do braço... Hoje, no entanto, só silêncio fúnebre ressoa da porta trancada, alguém morreu ali e outro alguém desceu escadas silenciosas, um corpo mudo de guitarras e baterias descia a escada não mais por sua força, acabou-se. Fim de história. Bem aqui embaixo dos meus pés, há agora um lugar proibido de escavações, um lugar que não toca mais música alguma, nem há dedos percorrendo guitarras, nem bocas para cigarros, nem mãos para levarem o lixo, nada, nada, nada, nada sobra na morte, só quem fica e, em quem fica, aquela qualquer coisa dura como os olhos de um cão fiel. A morte tem estado com os dentes a amostra por todos os lados tentando nos dizer alguma coisa, não é possível que ela seja muda. Não é possível que aqui e agora seja aleatório. Há de haver alguma coisa escondida ainda, é preciso olhar mais fundo, eu vou tentar, você vem? Advirto-te, no entanto, que talvez não haja nada mesmo, só um caos e nada para além do que se possa fazer com poesia, que é pouquíssimo diante de um corpo. Leitor, os tempos não são fáceis e parece haver um plano de morte em curso para fazer as noites cada vez mais silenciosas, por isso, às vezes, é necessário mandar à merda os vizinhos e ouvir uma música qualquer às 22h, combatendo qualquer regra estúpida que nos priva a vida. Às vezes, é necessário subir uma montanha para poder gritar em paz, para poder, enfim, gritar sem que se ligue para a polícia. O tempo é irrealizável. Para hoje, silêncio. E eu não acredito nunca mais em coincidências. Toda vida é uma lição.
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