09 de julho de 2021
Tudo mudou e nada mudou, leitor. Essa é uma frase que gosto muito, assim como: "nunca coincidência, sempre destino". Essas são duas frases que nascem da mesma espinha dorsal: a confiança no futuro, esta que tenho de sobra, penso muito no futuro, como você deve ter percebido ao longo das nossas grandes caminhadas por aqui. Estar comigo nesse espaço é dar-me a tua mão para que entremos com Caronte numa barca e, mesmo assim, estás aqui: que bom, bem-vindo de novo. Sei que hoje não é domingo e que tenho me demorado, mas é que a sobrevivência vem matando a vida dia após dia e eu fico com isto mesmo, cheia de ideias nas mãos e na cabeça que vão se perdendo como o fio da meada que este, você sabe, eu perco sem dó nem piedade. Acho que precisamos conversar, então, venha cá perto e se for cedo, tome um café comigo; se for tarde, tomemos um chá. A gente pode brincar de viver este instante como se você me conhecesse e eu o conhecesse, meu leitor ideal, imaginemos que dividimos um longo silêncio sob uma luz amarela, se dia, das quatro da tarde, se noite, de uma lâmpada antiga, agora, rompo este silêncio e vou te contar coisas da vida. Dá-me tua mão e vamos à barca de Caronte. Ontem mesmo eu tentei começar a escrever esta postagem já devida há tanto tempo, mas fui pescada por um verso e depois outro e depois outro e depois outro e cai na rede (não tem quem não caia), o primeiro dos versos era um verso de Herberto Helder, que dizia assim: "não se chega ao amor sem o alto do fogo", a sucessão de versos tecia a mesma ideia, não se chega ao amor sem o alto do fogo. Você sabe, o fogo alto tende a queimar a carne por fora sem cozinhar por dentro, resultado: parta-a e encontre um rio de sangue, seria assim mesmo o amor? Queimar por fora e estar sanguíneo por dentro, ser todo um coração que pulsa? E que por fora é pele viva? Acho que sim. Falando-se em Herberto Helder, eu gosto muito desse autor esquisito português, este raríssimo autor, tanto que comprei dois livros dele a preços terríveis apenas para lê-lo com as mãos, como gosto de fazer com tudo. Você pode me dar uma palavra, mas se eu tocá-la sob a mão terei tudo, como as pessoas e coisas em geral, tenho a atração clandestina de tocar em obras de arte, por exemplo, mas como sou uma tímida, contenho-me. Um dia, nas cadeiras da minha graduação, assistindo uma aula de Lírica Portuguesa, conheci o Herberto, li sob a minha mão um poema chamado "Tríptico", em que ele dizia: "cem ideias dentro de mim te procuram", leitor, eu lembro da agonia no estômago, este arranjo de vocábulos, este cacho de ouro caindo na folha de papel e sendo balbuciado pela minha boca, esses são os meus pequenos tesouros, que guardo muito bem e compartilho sempre, é por isso que escrevo, para compartilhar, sou efusiva, meio saltitante até, uma empolgada existencial, acho que até uma romântica incurável, é por isso que escrevo. Mas vá, me diga, o que foi que você leu que estalou os seus ossos de prazer? Que você teve vontade de ligar para a sua mãe - ou seu pai, ou sua avó, irmãos, o melhor dos amigos - e dizer: encontrei um tesouro! Às vezes, ele é de carne e osso e anda por aí, as sutilezas da vida. Já pensou o êxtase de pensar neste encadeamento de sílabas: cem-ideias-dentro-de-mim-te-procuram. Não é o desejo que procura ou o amor, são as ideias, aquilo que nos é mais individual e este eu lírico está dizendo: "vem, estou aberto, aqui está minha cabeça", é quase como despir-se à campo aberto e correr com cavalos e convidar mais alguém. Acho que esse é o mais sutil e raro dos amores, as carnes tendem a ferver com certa facilidade, mas a alma é imoral e sommelier, ela cata o puro néctar e não se abre facilmente, cospe quase tudo e tende, sempre, a traçar os próprios caminhos, desdizendo o corpo tantas vezes. Ou não? Não sei, posso estar dizendo besteira nesta sexta-feira silenciosa. Bem, para acertos e erros, é necessário catar tesouros, para que, no fim, tenhamos alguma coisa. É preciso, mais do que nunca, aninhar os seus recortes de vida, fazê-los valer, tê-los perto, não subestimar a entrega, essa coisa impossível de se efetuar sem que as ideias queiram ser ditas para quem as ouve. O amor das ideias seria a amizade? Afinal, por que a menosprezamos tanto? Este que parece ser o mais duradouro dos amores. Dia desse lia, na Bíblia, os cânticos de Salomão, como é bonito o nome Sulamite e como era bela, essa primeira mulher negra adorada por um rei. Tenho uma certa paixão por narrativas antigas, vezou outro me imagino com olhos bem delineados e muitos véus cobrindo poucas coisas, das minhas fantasias mais intensas, é certo que desmaio se ver o Egito Antigo. O amor tinha suas regalias, como o lava-pés, mais uma das entregas ancestrais ditas com as mãos. São inutilidades que te digo, leitor, e, por isso, muito úteis. Por isso, para dizer o que me chega, tenho um leitor ideal na minha cabeça, já que as cartas são traiçoeiras e individuais demais, estou aqui para que eu possa dizer finalmente o que quer ser dito, como agora, não é fácil se confessar, só faz quem pode. Por isso, a santa confissão tem um biombo que esconde o rosto do padre, o outro deve ser um anônimo ou um profundo conhecido, como estes segundos são poucos, erguemos biombos e existem os livros e blogs como esse. Não desista agora, virei em breve. Chegamos no destino, dá-me tua mão e saiamos agora da barca de Caronte, dei-lhe as moedas. Até aqui viemos e vou te dar um tesouro: Miss You, na voz de Etta James, para todos nós que deixamos alguma coisa e esperamos sempre que o telefone toque. Calce de novo as sandálias e até breve.
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