14 de julho de 2021

 Eu disse que viria. Tenho coisas a contar mesmo que tenha fechado a porta a pouco. Primeiro, esta passagem: "só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira". Quem disse isso foi Clarice, em Água Viva, que acabei de ler mais uma vez e já não sei mais quantas são as leituras, este é o livro que guia meu estudo da dissertação, que é bem uma desculpa para que eu fale do que eu amo, de modo custoso, admito, mas, anda assim, cheio de vontade de vida e de ouvidos e de olhos. Ainda sobre essa coisa de produzir academicamente, tenho um livro, de Margareth Rago, dado a mim por um amigo que o comprou num sebo, nele, há uma dedicatória de uma outra pessoa, que diz: "uma tese com tesão", amo essa frase, esse jogo de t's, esse muito dito em poucos, assim como a frase "Eu te amo, xxxx", seguida pelo nome da pessoa amada, há nesse jogo um manancial. Bem, parece que eu vou entrando já no assunto de antes e não foi exatamente para isso que vim. Vou te dizer. São onze e trinta e cinco da noite e me acometeu um bocejo longo mesmo que eu tenha dormido bastante, o de praxe, o que me acontece é que trabalho enquanto durmo, me movo no mistério das coisas para criar acordada e esses dias sonhei que manuseava argila nas mãos. Sou uma boa fazedora de esculturas em barro, sempre fui, desde pequena. Antes desse sonho, senti nas mãos a vontade de manusear a pasta úmida dessa primeira matéria do homem, foi o corpo que pediu. Como, às vezes, os pés pedem o mundo e a cabeça pede os dedos, o corpo tem em si sua inteligência, por isso "uma tese com tesão" me captura, o tesão é uma coisa de corpo mas que não deixa de passar pelo pensamento - depois que passou pelo corpo, ele é o contrário, por isso escrever com ele me custa muito, deixa-me exausta, na verdade, preciso de um profundo silêncio, raríssimo por aqui, eu preciso extrair do corpo e, para isso, parece que corri meia maratona sob o sol de Recife na minha nuca, chego a sentir calor - e agora chove por aqui. Talvez por isso que eu durma tanto, poderia te dizer que estou entregue a Morfeu, mas vou mais longe, chego a Hypnos e posso ver sua mãe, Nix, a noite primordial deixa cair seu véu sobre mim e eu vou com uma cesta entre o braço e o tronco e vestida de Sol colher as palavras maduras que esperam ser escritas, por isso acordo exausta, ela tem me chamado para me dizer coisas belas e segredos de parágrafos. Sei que não sou daqui e por isso corri para te comunicar esta insensatez, "só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira", de novo. Essa iniciação dá-se de maneira muito simples, ela é um "click", um estado que precisa ser visto quando vem, se perdido, iniciação perdida e a vida não se dá. Ela só se dá se sentes que podes estender a mão e tocar um véu invisível, que podes desnudar um dia inteiro, que podes olhar bem no olho de outra pessoa. Esta iniciação se dá para os distraídos na noite, aqueles que vivem por aqui, mas que sabem que o mar existe para que o corpo seja submerso até que o corpo grite por ar e você o impulsione de volta e este respiro é em si uma iniciação. Para quem, por imprudência, andou em trilhos de trens escuros ou dirigiu rápido demais sem que se pudesse, havendo placas e avisos, para quem viu um lobo e foi desmentido, para quem jurou alguma coisa e guarda consigo essa promessa esperando tranquila num quarto, adormecida sobre penas de pavão, esperando. Essa iniciação é contra-norma, como é o próprio amor filho de Nix, te digo, sei que ele existe. Amor mesmo, amor doendo às vezes, amor fio desencapado, amor pelos eriçados, que não suporta espera e mansidão. Deves ficar para sempre na iniciação? Não sei. Mas se experimentaste, és iniciado, podes esticar a mão e retirar a véu das coisas. Outro tipo de iniciação se dá no âmago da noite, quando você, subitamente, reconhece-se finalmente, esta não carece de violência, o revirar do estômago da consciência de si já vai fazer as vezes da dor necessária para o parto da vida, enfim. É quando você sente, nos ossos, que precisa ir. Para onde? Você não sabe, sabe que precisa buscar algo no meio da noite. Talvez precise buscar a vida enfim que permite o silêncio e, no silêncio, os sonhos. A vida, enfim, é também um pouco teatral, precisa do espetáculo, da grande prova, do erguer e cair das cortinas, das luzes apagando-se no início e acendendo-se no final. Há muito tempo não vou ao teatro, que crime o meu. Ontem sonhei que atendia uma ligação e alguém que conhecia no sonho, mas que não identifico acordada, recitava-me: "De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento", eu cruzava uma avenida nunca vista por meus olhos acordados, fazia um sol laranja e os carros não faziam barulho, nem as pessoas nem os cachorros nem o mar, apenas aquele poema povoava o mundo, como acontece com as frases de afeto e dor que ouvimos na vida e que não se podem retirar da teia do pensamento, elas ficam e há dias que calam todas as outras coisas, a memória é um martírio, como fotos penduradas num fio vermelho. Escute "Coruja Muda", de Siba e Chico César, e tire uma foto sua. Devo ter escrito sobre a influência de Clarice, perdoe-me leitor, aconteceu e as coisas se acontecem. Escrevo porque sou tímida para abrir a boca e emitir o som, não é à toa que ornamento os meus dedos com anéis das pessoas que mais amo, são eles que dizem a verdade e, às vezes, traem-me quando tento mentir. Atenta para a tua iniciação e, quando puderes, retira o véu desta vida e chegue à outra, verás e, se puderes dizer, me diz. 

Comentários

Postagens mais visitadas