04 de outubro de 2021
Faz um ano e cinco meses que eu não vou à praça alguma. Neste tempo, dei para apreciar melhor as coisas, como a cortina bege que dança no vento na janela de minha casa, como as construções erguem-se rápidas ao passo que fazer crescer uma planta leva tempo e nem sempre dá certo. Há uma estrutura de concreto num prédio que consigo ver de minha janela, sem os óculos, essa estrutura vira uma grande pantera a repousar sob o sol do litoral, não preciso dizer que tiro os óculos calculadamente para viver esse momento onírico. Há quem ponha os óculos demais e as coisas vão perdendo o véu que só conservam se há um espaço seguro de apreciação entre observador e observado. Vi um poema esses dias que dizia mais ou menos que os maiores amantes foram aqueles que nunca contemplaram o amado nu e só lhe desferiram beijos na testa; conservando a poesia necessária, no ensejo das coisas dos sentidos muito se entrega sem que se tenha entregado absolutamente nada, sem que se tenha sequer aberto a boca, sem que a mão tenha tocado o objeto de desejo, é exatamente assim que o desejo nasce, da distância, a magia é saber conservar esta mística. Amado para sempre amado. Aqui, não falo exatamente de casais apaixonados, de amantes carnais e coisas do gênero par, estou falando que amar uma coisa carece afastamento às vezes, para que se veja esta coisa sem óculos: um amigo, um objeto, a mãe, o par - seja ele qual for. Muito necessário das coisas da vida estranhar-se com elas vezenquando. Disse que dei para apreciar melhor as coisas, leitor, mas não se engane, não me tornei necessariamente uma pessoa melhor, ainda não acho graça na compulsão de nossas distâncias, estou farta de viagens compulsórias, perdi demais desse mesmo modo muitas coisas ao longo da vida, sem poder eu escolher a renúncia, quase sempre renunciaram por mim. É muito engraçado olhar para fora, hoje mesmo, um minuto para as cinco da tarde, todas as redes sociais de interação entre as pessoas caíram... eu já ouvi de tudo, o fim do mundo sempre sendo anunciado por muito pouco, tenho a paz dos que olharam janela afora: a linguagem continua, os sentidos continuam e essas são maneira inalienáveis de comunicação, o dia segue belo, com pássaros planando entre os topos dos edifícios e as nuvens escurecendo aos poucos. Novamente, sinto-me há tempo - duas semanas ou três - ilhada entre meus amados, sonho com eles, os amigos, muitíssimo, alguns que já partiram, outros que sumiram, outros que precisaram ir, nesses sonhos, temos dividido segredos, que de tão secretos, eu não consigo lembrar quando acordo, só me restam seus rostos e a saudade de tocá-los, por isso o sentimento de perda - para além do colapso mundial - parece muito conhecido para mim, janto com ele quase sempre. Tenho saudade e grande curiosidade em saber em que estante guardam meus devaneios poéticos. E se guardam. Eu guardo muito. Guarde o que der, leitor, a memória é ouro.
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