10 de novembro de 2022

Ontem, a música brasileira perdeu Gal Costa. Grande ser mítico da cultura, voz, sensualidade, rigidez da aventura que é a vida. Gal se mostrava cheia de vida para ampliar ainda as outras vidas que a ouviam. Tenho sofrido muito essa perda, leitor. Gal esteve comigo. Desde que aprendi o que é angústia. Voltava numa kombi clandestina há anos, lotadíssima, eu, criança ainda, ouvia uma voz vindo ali do motorista, uma voz, A voz. Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo. Criança chorei de um buraco no peito que se abriu e se encheu tanto que doeu. Eu, criança cheia de melindres que era, chorando em um transporte lotado porque senti uma angústia sublime, que me dizia alguma coisa que iria ressoar e repartir minha vida antes e depois. Lembro que minha vó acreditou que era o enjoo típico e, de fato, eu estava enjoada, profundamente mexida, revirada pelo espetáculo de Gal, que eu não sabia que era Gal. Outro dia, meu pai cantarolava a mesma música e perguntei de quem era essa música tão bonita de voz tão rara. Quem era a mulher que cantava? Era Gal. Gal faz a letra ser letra assim como o papel faz o poema ser poema. Gal deu bossa aos meus devaneios amorosos, acompanhou-me numa barraca de Ocupação gritando "Baby", enquanto eu me declarava com o corpo. Me fez imensamente profunda ao dar grito à "beleza são coisas acesas por dentro, tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento". Nos 20, eu era imensa, amava muito, ouvia Gal. Queria ser ela, ter uma turma bacana, uma sem vergonhice, um Caetano, um Tom Zé, um Gil. E tive. Queria arrebentar tudo, amar igual. Por isso, que, para mim, morrer Gal é impossível - impassível, incompreensível. Gal ainda está a serpentear nas guitarras, está, está, está fa-tal, eu sei que está. Ouvi Gal borrada chorando de raiva, de tristeza, de saudade. Sorri Gal embasbacada com a vida. Vi o Recife ouvindo Gal, quando um sol morno já ia embora. Ensinei um ou outro a ouvir Gal. Fui ensinada também, Gal é coisa que sempre se aprende. Coisa mais bonita, tigresa, gogoia, fera, profana e santa. Não quero morrer, leitor, não quero que morram meus amigos, meus amores, quero que fiquemos Gal. Nesse momento, percebo que o tempo vem e nos cobre e nos esconde e ficam os outros a nos procurar para sempre. Para que me procurem depois, lembrem que eu gostava de Gal. Especialmente das lágrimas negras que só uma boa maquiagem borrada de alegria ou tristeza proporciona.

Comentários

Postagens mais visitadas