21 de janeiro de 2024

 Cachorra.

Quem mandou Adelaide ter uma cara tão bonita? Ela passou a infância inteira chorando na frente do espelho porque nada no seu rosto era o igual, era o similar. Adelaide nunca conseguiu ter olhos doces ou ternos, ainda que fosse doce e terna. Sua beleza não era uma beleza de Vênus. Era uma beleza quase de Plutão. Era uma beleza tirânica. E ela não entendia essa beleza e, enquanto a beleza não ganhava corpo e altura, ela estava a salvo na feiúra, estava a salvo em características mais controláveis como a inteligência, a sagacidade, a gentileza. Foi como um pesadelo, um dia, pintou os lábios de vermelho, comum, como outros tantos dias que fez o mesmo, mas, naquele dia, parecia que os lábios tinham finalmente tomado forma. Pintou-os, amarrou os chinelos e saiu de casa. Adelaide tentou defender uma ideia na universidade, ninguém a escutava, só observavam o mover de Deus nos seus lábios para cima e para baixo. Passou a mão na cabeça, tique que tinha desde a infância para ter consciência de si e aquilo resultou em uma jogada de longos cabelos negros. Pronto, era uma cachorra completa. Uma mulher feita para a idiotice dos homens. Uma mulher que teria que, para sempre abafar a sua cara de cachorra, cachorra como Helena de Tróia e Salomé, primeiras cachorras do mundo. Adelaide não sabia o que fazer, tentou as roupas folgadas e longas, não era uma questão de corpo, era, agora, uma questão de movimento, de respirar. Era uma questão inata quase, era um defeito o seu excesso de “beleza”. Se queimava no sol da labuta diária, sua pele ganhava dourados quase nunca vistos, se não penteava o cabelo piorava, era mais selvagem do que antes, estava sempre provocando, a coitada da Adelaide. Cachorríssima Adelaide. Puta. Puta mesmo. Queria mesmo era chamar atenção tendo aquela cara e ousando exibi-la, quem já viu? Não se dava ao mínimo respeito, envelheceria sozinha, não havia homem que suportasse uma cachorra como ela. Que não podia usar biquínis, coletes, saltos altos, bolsas mais caras, não podia mais enfeitar as orelhas, nada de furá-las, nem tatuar o corpo, já não podia ler também, porque cachorras não leem, cachorras que leem querem camuflar suas depravadas intenções com o intelecto. Tudo que sabem é uma desculpa para a sordidez da vontade de aparecer. Óbvio. Com uma cara daquela. Você já viu uma cachorra inteligente, por acaso? Não podia mais ser, se sendo, estava - na cabeça deles - prestes a instaurar a guerra entre Pernambuco e o resto do mundo. A puta da Adelaide. Não havia sequer tocado o corpo de mais de seis homens. Na clausura da sua cara. Da sua carne. Do seu martírio. Mas, pouco importava, era o que era, e, para ela, nada restava além do quase medieval agradecimento a qualquer homem que a levasse a sério, porque, claro, cachorra como ela… quem aguenta? Nenhum. Nenhum. Nenhuma. 

-

Um dia, Adelaide pegou uma faquinha de legumes na gaveta da cozinha e traçou o único risco na sua cara, começou na raiz dos cabelos, atravessou o nariz e rasgou a boca, gritava, gritava, gritava, a cachorra da Adelaide, coitada, doía muito se livrar de tamanha maldição. Deus, Deus, Deus, por que eu? Desse a qualquer outra que soubesse se defender. Era uma pena, diziam depois, uma moça tão bonita e tão sozinha morreu tão jovem. 

-

Adelaide gostava de sentir o sol na sua pele em dias obscuros. Lia filosofia. Psicanálise. Escrevia textos à mão toda sexta-feira e guardava-os. Tinha alguns livros de poema inacabados. Não gostava de toque físico. Era uma boa ouvinte. Gostava de borboletas e escorpiões. Tinha insônia. Alguns melhores amigos que a viam como ela de fato era. Estes choraram sem parar sobre seu túmulo, os homens iam aos montes cuspir na sua lápide. Cachorra também depois da morte. Morreu chamando a atenção numa nota de jornal. Nunca fora tocada verdadeiramente, ela adorava Goethe e livros grandes. Um amigo, a quem amava muito, ia ler-lhe páginas no seu aniversário sobre o túmulo de mármore branco. Nesses momentos, o vento balançava as folhas da floresta e ela estava ali, finalmente sem corpo. Livre. Adelaide tomava whisky, mas não gostava de exagerar, tinha receio de sair do controle de si. Não gostava de sair de casa, matava seu tempo lendo e trabalhando no que sempre precisava ser trabalhado, não era cachorra no seu trabalho, porque lá, ninguém queria lhe tirar um pedaço, em sua maioria, claro, não podemos afirmar nunca 100%. Quem amou Adelaide nunca a esqueceu. Era doce, interessante, um pouco melancólica, mas bem-humorada. Uma mulher comum, que dormia, acordava, via filmes e se apaixonava perdidamente, principalmente, por quem a odiava. Era uma menina, a Adelaide. Infelizmente, quem venceu não foi ela. 

Comentários

Postagens mais visitadas